Numa tarde amena, em Lisboa, o Maka Angola sentou-se à conversa com Luaty Beirão, músico de Hip Hop, também conhecido como Ikonoklasta e como Brigadeiro Mata Frakus. Filho de João Beirão, antigo presidente da Fundação José Eduardo dos Santos (FESA), Luaty é também um conhecido participante do movimento jovem de contestação que tem vindo a crescer em Angola desde 2011.
Maka: Você é luso-angolano [por via da dupla nacionalidade], nascido em Angola. Conte-nos um pouco sobre as suas raízes, a sua família.
Luaty: Nasci em Luanda, a 19 de Novembro de 1981. Vim para a Europa, para estudar, quando concluí o ensino médio. O meu pai era da Gabela, Kwanza Sul. A minha mãe de Luanda. Do lado do meu pai nunca conheci família nenhuma porque o irmão dele faleceu antes de eu nascer. É um lado mais solitário, o lado da família do meu pai, que não conheci nem avôs, nem tios, nem primos. Do lado da minha mãe, a minha avó é de Luanda mas o meu avô é do Lubango. Já os bisavós, sei que havia uns que vinham de Aveiro, outros que já nasceram lá [no Lubango]. Portanto, já venho de uma terceira geração de angolanos, nascidos em Angola.
(...)
Maka: Falemos dessa viagem de regresso a Angola. Foi a pé e à boleia de Lisboa até Luanda….
Luaty: Exacto. (Vide aqui)
Maka: Ao contrário dos milhares de emigrantes africanos que tentam alcançar a Europa, fez o percurso inverso. Qual foi a motivação?
Luaty: As limitações que me impunha eram sempre o perigo e as doenças e os animais selvagens… E eu nunca achei que nenhum desses pretextos fosse bom o suficiente para me desmotivar.
Eu saí [de Lisboa] com 115 euros, que era tudo o que eu tinha, mais quatro t-shirts, dois ou três calcões, um saco de dois quilos de frutos secos que seriam a minha refeição quando não aparecesse outra coisa. Mas fui com plena confiança que eu ia encontrar, porque eu conheço a natureza da gente simples de África, de todos os países africanos, que é igual à gente simples um bocado por todo o mundo. E fui com plena confiança que ia encontrar essa solidariedade. E encontrei todos os dias. Ao ponto de eu não ter conseguido começar o segundo saco de frutos secos… (Risos)
(...)
Maka: Neste momento a música em Angola está a ter um papel importante como instrumento de contestação, com músicos como você, o MC K e muitos outros com quem também colabora. Como chegou ao universo da música interventiva, da música com carga social?
Luaty: A minha música sempre reflectiu o meu estado de espírito. Chateado quando estou chateado, a dizer os meus disparates quando estou muito chateado ou quando era simplesmente um jovem e… era bastante disparatado, dizia bastante mais asneiras. A música também reflectia isso.
E durante alguns anos a minha música era o Hip Hop, era um hip hop para rappers, era música para rappers, não era uma música transversal que podia ser ouvida por toda a gente, era para quem percebia os códigos do Hip Hop. Mas depois fui amadurecendo.
Maka: Quando começou a fazer música?
Luaty: Desde 94, eu tinha 13 anos. Comecei a rabiscar coisas, a brincar ao músico. No entanto nem o meu pai nem a minha mãe sabiam, até que uma das músicas que eu fiz, já cá na Europa, chegou ao meu pai por um amigo, um grande amigo seu.
(Risos)
E aí ele descobriu. Ligou-me para a Inglaterra: “Ouve lá, tu és o Brigadeiro Mata Ratos?” Eu fiquei muito encabulado….
(...)
Maka: Quem eram esses músicos? (que contribuíram para a sua formação intelectual e cívica)
Luaty: Um grupo essencial, para mim são os Filhos da Ala Este. Esse grupo foi um ponto de viragem para mim. É uma grande referência desse momento que se viveu. Eles também eram vítimas de um bocado da falta de qualidade musical nos instrumentais mas com uma tal capacidade descritiva… Tão bem escrito, tão forte que conseguia prescindir de tudo o resto. Emocionou-me mesmo, ao ponto de me fazer sentir estúpido na minha soberba de privilegiado que sempre teve acesso a tudo e mais alguma coisa; [de alguém] que sempre teve o preconceito de que quem vive no gueto não tem acesso à educação e é estúpido, é burro, é analfabeto.
Ser confrontado com cinco (acho que eram cinco ou seis) jovens com um tal discernimento, uma tal clareza de ideias, eu senti-me um autêntico ignorante. Eles tiveram essa força com a música deles. Fizeram-me sentir estúpido e totalmente desconhecedor do país.
Depois apareceu o MC K, também influenciado por esse grupo. O MC K apareceu no fim dos anos 90, lançou o primeiro álbum em 2002 mas já vinha fazendo algumas coisinhas.
E foram aparecendo outros grupos, não tão vincados, não tão directos, desses que conseguiram ter algum nome como os Hemoglobina, Flagelo Urbano.
Ainda aparecem raros casos de grande talento individual, casos dignos de referência como o Phay Grand ou o Mona Dya Kidi, que é das últimas coisas que apareceu aí muito interessantes, muito inteligente, uma maneira de rimar muito dele e com uma mensagem consistente.
(...)
Maka: Recentemente, a 11 de Junho deste ano, você foi preso à chegada a Lisboa, proveniente de Angola, por ter sido encontrada cocaína na sua bagagem. O que tem a dizer?
Luaty: Sim. É conhecimento generalizado das práticas utilizadas, sobretudo com pessoas que têm esse tipo de posicionamentos, tão declarado, tão aberto, sem tabus, e que sejam contra o poder instituído. Eu próprio, tirando esta última vez, das últimas vezes que viajei, viajei sem bagagem de porão, só com a mochila. Desta vez arrisquei-me e dei-me mal. Dei-me mal entre aspas, porque tendo sido a tentativa deles tão frustrada e a manipulação tão grosseira, acabaram por ser eles [o regime] a sair mal na fotografia e a darem um bocado mais de visibilidade àquilo que nós estamos a fazer.
Maka: Como está o caso?
Luaty: Neste momento eu tenho a liberdade de ir para onde eu quiser desde que notifique as autoridades [portuguesas] se este período for superior a cinco dias. Logicamente que me limita um bocado não ter a certeza, não puder saber… Isto tem a ver com a data de marcação do julgamento. Tenho que puder estar disponível para estar cá quando for convocado para ser presente ao tribunal. Vou continuar a fazer a minha vida normalmente, porque isso me foi permitido, me foi dada essa possibilidade com esta medida de coação. E, neste momento, o caso está a ser investigado pelo Ministério Público.
(...)
Maka: Regressa a Angola?
Luaty: Volto sim. Dia 26 de Julho.
Leia a entrevista na íntegra aqui.
J.I
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